Em 2021, já houve 28 registros e 24 denúncias de feminicídio no Paraná
No mês marcado pelo Dia Internacional da Mulher, é essencial abordar a data como um período de reflexão social em torno dos crimes contínuos contra vítimas femininas em todo o Brasil, no Paraná e no litoral. Frequentemente, a Folha do Litoral News divulga casos de feminicídio, os quais escancaram o problema da violência contra a mulher na sociedade local. Em entrevista na última semana, a promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná (MPPR), Ticiane Louise Santana, explicou o que é esta modalidade penal e qual a importância de haver punição a quem comete este tipo de crime.
A promotora atua no Tribunal do Júri e é especializada em julgamentos desta ordem, sendo que ela explica o motivo de existir esta qualificadora, bem como aborda o peso estrutural do machismo na sociedade, que influencia na incidência frequente de casos de feminicídio. Segundo ela, de acordo com dados do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do MPPR, neste início de 2021 já houve 38 registros e 24 denúncias de feminicídio no Paraná, sendo que em 2020 houve 225 casos desta modalidade penal em todo o Estado.
“A qualificadora do feminicídio surge no nosso ordenamento jurídico em 2015 com a Lei n.º 13.104. Ela aparece exatamente naquela onda que foi iniciada no ponto de vista legislativo com a Lei Maria da Penha em 2006”, explica a representante do MPPR, explicando que a modalidade penal é uma qualificadora de homicídio. “Dizer feminicídio é dizer um homicídio, como outros que já ocorriam, só que a especificidade do feminicídio é que ele é um homicídio que tem como vítima uma pessoa do sexo feminino e que sua morte é, portanto, em decorrência da sua condição social, do impacto que o gênero feminino repercute por ocasião da sua morte. Em bom português, a lei traduziu isso como matar uma mulher em razão do sexo feminino, em razão da própria condição dela”, explica.
Segundo Ticiane Santana, há duas situações em que o feminicídio ocorre: uma delas é prevista no inciso I da qualificadora que é a situação de morte em razão da violência doméstica e a outra hipótese é que se vitima mulher em razão do sexo dela por menosprezo a sua condição de mulher. “A importância é reivindicada há muito tempo, principalmente pelos estudos e teoria feminista do Direito, as coisas precisam ter nomes. Antigamente, antes de 2015 e da lei de feminicídio, matar uma mulher nas condições, por exemplo, de violência doméstica, muitas vezes quando o Ministério Público, nós, promotores e promotoras, íamos descrever esta conduta perpetrada para a pessoa que mata uma mulher em razão da violência doméstica, nós colocávamos assim: matar alguém, uma mulher, em decorrência do ciúme, porque não aceitava o fim do relacionamento, e esta condição especial então, antes da qualificadora, era um homicídio com motivo torpe”, explica.
“Entretanto, as coisas precisam ter nome, inclusive para que se estabeleça um marco teórico de estudo sobre aquelas condições de mentalidade feminina. Muitos estudos já reivindicavam esta questão de trazer nome a esta condição específica que acometia mais de 70% da letalidade feminina. A importância de se dar o nome de feminicídio é inclusive fazer o que muitas feministas chamam de recategorização normativa. As coisas precisam ter nomes para que elas sejam emblematizadas, simbolicamente vistas e enfrentadas com a cara que o problema tem. Mulheres morrem, não por condição de motivo torpe, mas por uma condição específica, por ela ocupar o impacto do gênero feminino na sociedade, essa condição de inferioridade diante do gênero masculino”, explica, destacando que este foi um marco fundamental na construção teórica, “tentando prevenir e melhor ressocializar este contingente de letalidade que atinge as mulheres”, complementa.
Legítima defesa da honra
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) abordou a inexistência da tese chamada “legítima defesa da honra”, algo que, segundo a promotora, foi um avanço na legislação e jurisprudência. “A própria construção simbólica, a Corte se ocupar para dizer claramente, emblematicamente, que o aporte defensivo da legítima defesa da honra é inconstitucional, e todas as outras teses indiretamente ligadas a esta condição, é um avanço que precisa ser registrado não somente no ordenamento jurídico, mas até como forma de louvar um avanço cultural. Esta questão é muito antiga no nosso ordenamento jurídico, na época do Império, matar mulher porque o homem se sentia autorizado ou porque ela o traiu ou queria acabar a relação e ele não aceitava, é algo que já teve vários nomes, até de demência amorosa na época do Império. Então sempre existiu este aporte defensivo da legítima defesa da honra”, explica.
“Depois da Constituição de 1988 sempre foi enfrentada pelo STF com um certo cuidado esta questão no sentido de que isso não pode mais continuar, porque a própria Constituição Federal (CF) funda um marco jurídico bastante demarcado no sentido de prestígio à dignidade da pessoa humana. Essa condição, evidente, é louvável a homens e mulheres. A CF também prestigia a igualdade do homem e da mulher, o Supremo analisava até então que a legítima defesa da honra era um argumento que não podia se sustentar, só que no ano passado a Defensoria Pública, importante que isso seja dito, até para que as pessoas entendam como foi rediscutida, em setembro de 2020, entrou com um Habeas Corpus (HC) pedindo que o feminicida, mesmo confesso, fosse absolvido, com base no que os jurados entenderam e portanto no aporte defensivo trazido neste caso que foi em Minas Gerais que foi o de legítima defesa da honra”, ressalta a representante do MPPR.
Nesta esfera, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) cassou esta decisão, pois não havia um argumento jurídico, uma defesa e absolvição nesta linha, e a Defensoria Pública foi até o Supremo pedindo a manutenção desta absolvição do feminicida confesso. “Neste sentido, agora, em 2020, a discussão voltou a ser aquecida. Então houve a ADPF 779 e em sede de medida cautelar, agora, em fevereiro de 2021, através da relatoria do ministro Dias Toffoli, ele assentou, através da concessão cautelar desta ADPF, que ainda será submetida ao referendo da Corte integral, no sentido de utilizar a legítima da defesa da honra como um aporte defensivo no Tribunal do Júri ou na parte pré-processual é inconstitucional”, explica. “Isso traz questões que merecem reflexão de repensarmos porque defendemos feminicidas com base neste aporte argumentativo. A decisão, ainda cautelar, é louvável, porque emblematiza a inconstitucionalidade deste tipo de aporte defensivo, inclusive, nas palavras do ministro, este ranço cultural que precisa ser defenestrado”, argumenta.
Segundo ela, deve-se sempre prezar pelo respeito aos direitos humanos da vítima e do réu na discussão do Júri, submetendo-se a uma legalidade responsável.
Cenário que ocasiona o feminicídio
A promotora explica que o ciclo de violência relacionado aos casos de feminicídio começa em um contexto relacional afetivo, sendo tênue e socialmente invisível. “Ele se dá na intimidade das pessoas que entretém aquela relação íntima de afeto. Muitas vezes o ciúme é visto como uma forma de zelo, a questão de submissão de um perante o outro é visto como uma manifestação afetiva. Nessas assimetrias vão se tecendo aí uma relação que na maioria das vezes vai se colocar, no ponto de vista íntimo e social para o externo, como uma relação absolutamente assimétrica, em que um tem autorização externa para ter condutas ativas e o outro ou outra se coloca em uma condição mais passiva dentro deste contexto. Ou seja, a igualdade de reivindicações e trocas passa longe”, ressalta.
A jurista afirma que a relação abusiva se constrói neste contexto e em um ambiente de agressividade. “Esta relação, que até então era entrosada neste vínculo íntimo entre os dois, encontra, através das dinâmicas sociais autorizadoras, condições que colocam, na maioria das vezes, o homem em uma posição ativa, legitimado a ter posturas agressivas, e a mulher, como um verdadeiro script social a ser cumprido dentro do contexto relacional perante a sociedade”, argumenta. “A própria sociedade ajuda na construção destes estereótipos, quando nós educamos meninas a sempre serem dóceis, obedecendo às ordens, quando criamos meninos para que sejam agressivos, que não levem desaforo para casa”, explica. “Este tipo de situação cria estruturas absolutamente antagônicas, pouco comunicativas e dialógicas no sentido das verdadeiras trocas sobre as quais devem se basear qualquer relação afetiva”, complementa.
“Como estamos discutindo no contexto jurídico, evidentemente o próprio respeito à decisão do outro de deixar é a maior manifestação de rompimento deste vínculo de maneira civilizada, respeitando a liberdade alheia de um e do outro para que sigam seus destinos. É possível a quebra de um vínculo afetivo, ela exige enfrentamentos individuais, íntimos, pessoais, da própria construção subjetiva das pessoas que estão na relação e, para nós, Estado, principalmente, devemos sempre prestigiar a autonomia das pessoas que estão se relacionando, no sentido delas serem livres para decidirem o momento que desejam ou não sair da relação”, finaliza a promotora de Justiça.
Com informações do MPPR/MP no Rádio
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