Recentemente, um caso de violência sexual contra uma menina de 10 anos chocou o País. Após quatro anos sofrendo abusos sexuais praticados pelo tio, ela engravidou e teve o aborto autorizado pela Justiça no Recife. O fato reacende a importância de debater o tema, que possui legislação voltada à proteção de crianças e adolescentes nessas situações.
A delegada de polícia e chefe do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria) em Paranaguá, Maria Nysa Moreira Nanni, revelou que, em Paranaguá, foram registrados cerca de 15 boletins de ocorrência envolvendo violências praticadas contra este público neste ano. “Desses números, mais de 80% se referem a algum tipo de crime relacionado a abuso de vulnerável ou crimes contra a dignidade sexual ou pornografia”, destacou.
Segundo ela, as denúncias não tiveram aumento nos últimos meses, em função da pandemia, mas houve aumento no relato de gravidade nos crimes praticados. “Mais notadamente nos que envolvem agressão física, abandono e maus-tratos”, destacou a delegada.
Crimes velados
Sobre os abusos cometidos pelo tio da menina de 10 anos, caso divulgado amplamente pela mídia nos últimos dias, a delegada afirmou que crimes como este podem ocorrer por tanto tempo sem serem noticiados por vários fatores. Ela mencionou alguns que mascaram as ocorrências de acordo com o que tem observado no trabalho realizado no Nucria, em Paranaguá.
“Pode haver aceitação dos adultos, que podem induzir a ocorrência do abuso por algum interesse monetário e incentivo à prostituição; aceitação dos adultos, que dependem economicamente do abusador da criança e/ou são da mesma família; descrença no relato da criança – e nesses casos, lamentavelmente, é muito comum, a criança continuar a ser exposta para, então, ser criado algum tipo de fato que sirva de prova para a denúncia. Absurdo que ocorre com muita frequência e prejudica não apenas a investigação, mas o desenvolvimento psicológico e emocional da criança”, pontuou a delegada.
A omissão dos crimes pode passar ainda pela desinformação dos pais, negação do fato pelo excesso de confiança na pessoa que abusa, medo de denunciar o abusador e desconhecimento da violência. “Geralmente, nos casos em que as crianças ficam longe dos cuidados familiares, seja por abandono, seja por necessidade de trabalho dos adultos ou não inserção da criança em ambiente escolar ou familiar adequado. Permitir que crianças brinquem na rua, entrem e saiam de casas na vizinhança como se todos fossem ‘da família’ são situações que se apresentam potencialmente perigosas”, alertou Dra. Maria.
Outros fatores de risco envolvem a desinformação das crianças sobre o seu corpo e o estímulo dos pais para que as crianças sejam “simpáticas” com estranhos. “Quando uma criança não quer contato físico com adultos estranhos, isso deve ser respeitado. A criança não deve ser obrigada a beijar as pessoas para cumprimentá-las, não deve aceitar colo se puder caminhar, nem presentes sem um motivo como aniversário”, ressaltou a delegada. “Em resumo, deixar a criança sem o olhar atento de adulto responsável aliado ao tabu de evitar conversar, didática e honestamente, sobre sexo e gravidez com crianças e adolescentes é a fonte desse flagelo que recai sobre tantas famílias no Brasil”, reiterou a delegada.
Vara da Família
A juíza Dra. Pamela Dalle Grave Flores explicou como a Vara da Família e Sucessões, Infância e Juventude atua nesse contexto. “Quando há encaminhamento de um caso em que houve violência contra a criança ou há suspeita (seja ela sexual ou não), na seara protetiva da Infância e Juventude são feitos todos os encaminhamentos necessários, tais como à saúde, psicológico, atendimento pelo CREAS etc.”, contou a juíza.
Além de cuidar da criança e do adolescente, há a preocupação de que a violência não ocorra novamente. “Muitas vezes há o afastamento do agressor do lar, determinação de distanciamento e proibição de aproximação do agressor. Porém, muitas vezes, o ato de violência decorre no seio da própria família e, nesses casos, infelizmente, é necessário colocar a criança em lugar protegido do agressor, que pode ser com um parente próximo (família extensa), com quem a criança tenha vínculo de afeto (avô, tio, primo) e, até mesmo, se não há qualquer chance da criança permanecer na família de origem (pai e mãe) ou extensa (avós, tios), é preciso realizar o acolhimento, como última e excepcional forma, pois o acolhimento também é abrupto com o infante”, considerou Dra. Pamela.
No entanto, o acolhimento é sempre excepcional e o mais breve possível, a fim de que se trate a família para receber a criança novamente ou, caso seja impossível, encaminhar a criança para a colocação em família substituta. “Durante o processo, seja ele de medida protetiva, seja destituição do poder familiar, seja criminal, as crianças vítimas de violência são ouvidas por equipe técnica especializada, por meio de perícia ou depoimento especial, de forma a não revitimizar o infante”, disse a juíza.
Busca de orientação
Durante a pandemia, os fóruns estão fechados, mas o trabalho da Vara da Família da comarca de Paranaguá continua. Os atendimentos agora são realizados por telefone, e-mail e videoconferência. “Caso haja a necessidade de atendimento presencial, verificado no processo, no caso concreto, este é realizado com todas as cautelas e cuidados de higiene possíveis, como no caso de oitiva especializada da vítima de violência sexual”, destacou a juíza.
O Conselho Tutelar também funciona para esses atendimentos, assim como o Ministério Público. “Caso a pessoa precise de alguma orientação de como agir nesses casos de violência, a orientação é que procure a rede de proteção (Conselho Tutelar, CREAS, CRAS, Unidade de Saúde, mais próxima de sua casa), o Poder Judiciário (via telefone e via e-mail) ou o Ministério Pùblico (via telefone e via e-mail)”, orientou a juíza.
Onde a sociedade peca?
De acordo com a Dra. Pamela, a sociedade tem o dever de ficar alerta aos menores sinais de que a violência está ocorrendo. “Geralmente, esse tipo de violência ocorre no próprio seio familiar e, muitas vezes, os sinais não são observados por aqueles que deveriam ter todo o cuidado com a criança e o adolescente. Os sinais são pequenos, mas visíveis, como mudanças de comportamento repentino, choro, insistência para não ir a algum lugar, medo, algo diferente na vida da criança que antes não era apresentado. Esses sinais são de alerta e devem ser notados por toda a sociedade. Mas, especificamente, as escolas têm papel fundamental, pois são normalmente o lugar em que as crianças apresentam esses sinais mais visivelmente e onde acabam por ficar mais à vontade para conversar”, evidenciou a juíza.
Plano de enfrentamento
Paranaguá possui uma rede de proteção integrada e que precisa chegar ao conhecimento dos cidadãos para que eles saibam identificar os sinais e os caminhos para a denúncia. No ano passado, o município lançou o Plano Operativo Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Criança e Adolescentes, contendo seis eixos. O foco é, especialmente, na prevenção à violência sexual mediante educação, orientação e sensibilização da população, bem como voltado a assegurar o atendimento especializado e em rede às crianças e aos adolescentes em situação de violência e às suas famílias.
As denúncias de violência contra a criança e ao adolescente podem ser realizadas na delegacia de polícia mais próxima ou através do Disque 100, de forma anônima. Paranaguá tem a delegacia especializada, o Nucria, localizada na Rua Manoel Bonifácio, 483, Centro Histórico.