Direito & Justiça

Casas Abrigo: O provisório refúgio de vítimas da violência doméstica

Pioneiras no acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, as Casas Abrigo existem desde 1986.

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No ano passado, Catarina* se viu obrigada a faltar 12 dias ao trabalho. As explicações eram várias, mas relacionadas ao mesmo motivo: as sucessivas agressões do ex-marido. Um dia era a agressão propriamente dita; no outro, o medo de sair de casa. Depois, um dia inteiro prestando novas queixas na delegacia ou fazendo exames de corpo de delito.

arte(36)Foto: Divulgação CNJ

Em dois anos de separação, foram mais de 10 boletins de ocorrência (B.Os) contra o agressor, pai de seus dois filhos menores de idade.

Estes também sofreram o impacto do inconformismo do pai em relação à separação e, sistematicamente, eram obrigados a faltar à escola por causa da confusão em casa. Enquanto a Justiça não decide o que fazer com o agressor, a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) da cidade onde vivem propôs uma medida radical: encaminhar mãe e filhos a uma das 155 Casas Abrigo em funcionamento no País.

CASAS ABRIGO

Pioneiras no acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, as Casas Abrigo existem desde 1986, quando a primeira foi inaugurada em São Paulo pela Secretaria de Segurança Pública (cujo titular era o atual presidente da República Michel Temer), e, desde então, mulheres e crianças vítimas de violência doméstica já viveram nesses espaços de acolhimento sigilosos,  previstos na Lei 11.340/2006 (Maria da Penha).

A história de Catarina é semelhante à de muitas brasileiras que vivem relacionamentos marcados pelas violências física, verbal e psicológica.

Catarina e as crianças vivem sem contato com a família, com amigos ou qualquer rede social. Catarina deixou de trabalhar e os filhos deixaram a escola. No abrigo, mãe e filhos dormem no mesmo quarto e seguem rígidas regras de segurança. Não vão ao cinema, não passeiam pela vizinhança, só saem do abrigo acompanhados. Quando precisam falar ao telefone, a conversa é monitorada. Nenhuma informação que possa identificar o local do abrigo pode vazar. As crianças perguntam diariamente à mãe quando sairão de lá. 

“Não posso me queixar do atendimento aqui. As pessoas são gentis, nos acolheram muito bem. Mas também não posso deixar de comparar minha situação com a dele (o ex-marido). Fui condenada com a falta de liberdade e não cometi crime algum. Estamos privados do direito de ir e vir enquanto ele segue livre, ameaçando meus parentes, amigos, ex-colegas de trabalho”, desabafa a profissional de Marketing, há 8 meses no abrigo. 

As Casas Abrigo têm como objetivo prestar atendimento psicológico e jurídico e encaminhar para programas de geração de renda, e até fornecer acompanhamento pedagógico às crianças, uma vez que não poderão frequentar uma escola comum enquanto estiverem ali. Mas é uma fase traumática, afirma a psicóloga Branca Paperetti, que coordenou, por 25 anos, o Centro de Referência à Mulher Casa Eliane de Grammont, em São Paulo. “É um momento em que a mulher sai de circulação, rompe com tudo, laços, vínculos, para não correr o risco de ser morta”, diz. 

Mesmo previsto na Lei Maria da Penha, o acolhimento de mulheres ameaçadas de morte em Casas Abrigo, entre os 5.570 municípios brasileiros, só é possível em 155 casas de 142 cidades (2,5% do total), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2014.

A maioria dessas Casas se concentrava na região Sudeste (45) e a minoria na Região Norte (9). Não há dados que permitam um retrato da situação jurídica das mulheres em abrigos. Após a Lei Maria da Penha, imaginou-se que a demanda por abrigamento diminuiria com a possibilidade de oferecimento de medidas de urgência que limitariam os agressores. No entanto, não é o que os operadores da justiça percebem na prática.

SERVIÇOS DE ATENDIMENTO À MULHER

No Distrito Federal, o juiz coordenador do Centro Judiciário da Mulher do DF, Ben-Hur Viza, avalia que houve aumento na procura pelos serviços de atendimento no sistema de Justiça. “As mulheres estão denunciando mais e isso aumentou a necessidade de protegermos maior número de vítimas. No entanto, minha percepção é de que o número de Casas existentes é insuficiente”, diz o juiz, que é titular do Juizado de Violência Doméstica do Núcleo Bandeirante (DF).

Para evitar que o isolamento da mulher na Casa abrigo seja prolongado, Ben-Hur conta que, assim que chega em suas mãos um processo de violência de uma mulher abrigada, decreta a imediata prisão do ofensor. “Decreto prisão do agressor simultaneamente ao encaminhamento da mulher à Casa. Reconheço que esse tempo na Casa é uma medida extrema, devido ao forçoso isolamento exigido. Mas, não tenho dúvidas: ele é fundamental para salvaguardar a integridade de mulheres ameaçadas e, de fato, salva muitas vidas”, diz o magistrado. 

“A Casa foi minha salvação, mas queria que minha vida não estivesse parada. Queria meus filhos brincando com os primos, livres e seguros. Me sinto meio abandonada aqui. Escondida de todos, da vida”, chora a vítima, que ainda aguarda ser chamada para a primeira audiência.

UTI

Em geral, o tempo de acolhimento nas Casas abrigo é de até 90 dias. Mas o prazo pode ser prorrogado. Há mulheres e famílias que ficam apenas um dia; outras vivem muitos meses no abrigo, como acontece com Catarina. A avaliação da gravidade dos casos de violência contra as mulheres deve ser realizada por um serviço especializado no atendimento de mulheres em situação de violência visto que o limite entre a ameaça e o risco iminente de morte pode ser bastante tênue.

A supervisora da Casa do Caminho para Mulheres em Situação de Violência Doméstica no Ceará, Jaqueline Pinheiro, compara esse processo ao atendimento emergencial de saúde. “Você não entra em um hospital e vai direto à UTI. Primeiro deve passar pela triagem. Aqui também funciona assim, mas quem faz a triagem é a rede de atendimento”, diz, referindo-se às DEAMs, delegacias comuns, Centro de Referência da Mulher, Centros de Referência em Assistência Social (CREAS) e Casas da Mulher Brasileira (CMB). Mas, ressalva, faltam programas de renda, moradia e emprego voltados a esse público. “Sem apoio, fica mais difícil ela sair da condição de vítima”, afirma Jaqueline Pinheiro.

ATUAÇÃO DO CNJ

O combate à impunidade nos casos de violação de direitos humanos e a busca pela melhoria e agilidade no atendimento de mulheres vítimas de violência têm sido um dos focos do CNJ. Desde 2007, o Conselho realiza uma vez por ano a Jornada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que auxiliou na implantação das varas especializadas nos Estados brasileiros. O órgão promoveu a criação do Fórum Permanente de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), bem como incentivou a uniformização de procedimentos das varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher. Em 2017, o CNJ instituiu a Política Nacional de Combate à Violência contra Mulheres por meio da Portaria 15/2017.

LEI MARIA DA PENHA

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Marco legal em relação a um crime considerado até 2006 de menor potencial ofensivo e punido com pagamento pecuniário, a Lei Maria da Penha  (Lei n.º 11.340/2006) mudou a ideia de que violência doméstica deva ser tratada no âmbito privado. A norma estabelece que todo caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime e deve ser apurado por meio de inquérito policial e remetido ao Ministério Público.

A lei tipifica as situações de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência social. Esses crimes são julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mulher, criados a partir dessa legislação, ou nas Varas Criminais em casos de cidades em que ainda não existe essa estrutura.

*Nome verdadeiro preservado por motivo de segurança 
Fonte: CNJ

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