Ser vítima ou testemunha de violência é uma experiência que pode marcar alguém para sempre, especialmente quando se trata de criança ou adolescente. Ao chegar à Justiça, as investigações normalmente envolvem a escuta dos envolvidos. Mas como ouvir crianças e adolescentes sem que o drama seja revivido? Sancionada em abril, a Lei 13.431/2017, que estabelece o “Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência”, cria parâmetros que procuram justamente evitar novos danos durante a escuta. A lei entra em vigor em 2018, mas até lá uma série de mudanças precisam ser promovidas para garantir seu cumprimento.
Elaborada por um grupo de 11 parlamentares, a lei “normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência […] e estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência”. Ela também reafirma os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e a necessidade de sua proteção integral e estabelece que o poder público, em todos os níveis, deverá desenvolver “políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão”.
Novidades – Segundo o procurador de Justiça Murillo Digiácomo, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação, como novidade, a lei define e diferencia, em seu artigo 4º, quatro formas de violência: física, psicológica, sexual e institucional (esta “entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização”). No âmbito penal, o artigo 24 tipifica como crime a violação do sigilo processual sem autorização, estabelecendo pena de um a quatro anos de reclusão e multa para quem o cometer.
Entre os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente, elenca, entre outros, o de receber prioridade absoluta, além daqueles específicos para as vítimas ou testemunhas de crime, como: receber tratamento digno e abrangente; ter a intimidade e as condições pessoais protegidas; ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio; receber assistência qualificada; ser resguardado e protegido de sofrimento.
Escuta qualificada – A nova lei regula a escuta especializada (entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção) e o depoimento especial (oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária). Tais procedimentos deverão garantir, entre outros pontos, que a criança e o adolescente vítima ou testemunha de violência sejam ouvidos em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaços físicos que garantam sua privacidade. Além disso, eles não deverão ter contato, nem mesmo visual, com o acusado. De acordo com o texto legal, tanto a escuta especializada quanto o depoimento especial passam a ser considerados igualmente válidos como instrumentos de coleta de provas.
Ainda fica estabelecida, pelo novo texto legal, a obrigatoriedade da instituição de parcerias e de integração operacional entre os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e Justiça para a escuta qualificada de crianças e adolescentes, assim como para seu atendimento na esfera de proteção, para se evitar a chamada revitimização, ou seja, fazer com que a vítima reviva o episódio de violência, de modo a sentir de novo a dor que lhe foi causada. Para que isso não aconteça, deve-se evitar a tomada desnecessária de depoimentos (por exemplo, quando as provas puderem ser obtidas por outros meios) ou, quando for necessário, fazê-lo por meio de profissionais especializados que saberão conduzir a conversa com a criança ou adolescente de modo a não reviver a dor.
Após a entrada em vigor da Lei 13.431 (dia 5 de abril de 2018), os Estados e municípios terão 180 dias para estabelecer normas sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Várias das providências agora definidas na lei já vinham sendo recomendadas pelo Ministério Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação (que emitiu ofício circular sobre a nova lei, com links para materiais de apoio), e por especialistas na matéria. A Comissão Permanente da Infância e da Juventude (Copeij) do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, inclusive, já havia expedido nota técnica sobre o tema, que pode ser vista aqui.
Ministério Público do Paraná
Foto: CNJ