Professor Henrique José de Souza
“Nasce a aurora! Tu resplandeces no horizonte Fugindo as trevas diante de ti, vem o dia!
E os teus raios, da Terra beijando a fronte, Toda a Natureza freme de alegria”.
(De um dos hinos de Kunaton)
SURGE ET AMBULA, KUNATON!
Ao fazermos a biografia do grande faraó Amenophis IV, por outro nome, Kunaton – o mais excelso entre todos aqueles a quem o velho Egito venerava ao mesmo tempo como “Reis e Deuses” – é como se estivéssemos à sua frente, vivificados pelos áureos raios daquele mesmo Sol, a quem ele dedicava hinos de uma inspiração tal, que difícil é encontrar outros iguais em nossos dias…
Como se sabe, “evocar é reviver”, é fazer ressuscitar algo ou alguém de um pas- sado mais ou menos remoto, além do mais, para que a sua memória possa servir de exemplo – de acordo com a própria evolução humana – àqueles que, nem sequer, sabem de sua existência histórica.
(…)
E que Amenophis IV, ou antes, Kunaton, “o amado de seu Pai Aton”, foi um “avatara” – pouco importa se total ou parcial da própria Divindade na Terra – falam bem alto os seus próprios versos:
“Tu estás no meu coração, ó Aton! Tu és meu Pai, eu sou Teu filho, Nascido de teu próprio Seio!
Tua carne, teu corpo na Terra!
Kunaton!
A REVOLUÇÃO RELIGIOSA DE AMENOPHIS IV
O reinado de Amenophis IV se deu de 1386 a 1370 anos antes de J. C., dentro, portanto, da 18ª dinastia dos Amenophis e Thutmés (1580 – 1321 a.C.).
Como todos os seus antecessores, Amenophis IV era considerado “filho e herdeiro dos deuses”, particularmente, como sucessor de Amon-Rá, padroeiro de Tebas, “a cidade das cem portas”, como era ela chamada, quando capital do Novo Império.
Nas muralhas e nos templos da cidade estavam gravadas as cenas tradicionais, que atestavam “a procriação do rei pelo deus e, portanto, seu direito de governar os homens”.
Em Luxor, por exemplo, representava-se a união carnal de Amon com a rainha Mutmâ, esposa de Amenophis III, o próprio pai de nosso rei revolucionário. Do mesmo modo, os meses de gravidez e o nascimento da criança com o auxílio dos deuses, enquanto Amon o recebendo em seus braços, reconhece-o como filho, consagrando-o seu herdeiro. Era a garantia da origem divina do faraó e respectivo direito de governar os homens. Tudo isso, entretanto, não passava de meros símbolos de um mistério que ficará para sempre velado aos olhos do mundo profano…
De todos os faraós, Amenophis IV foi o que possuiu a mais curiosa e enigmática fisionomia. Era um adolescente de estatura mediana, formas arredondadas e afeminadas. Os escultores de seu tempo traçaram semelhante corpo de “andrógino”, do seguinte modo: seios proeminentes, quadris muito largos, coxas e pernas verdadeiramente esculturais, embora com um aspecto geral equívoco e doentio. A cabeça, por sua vez, singular, possuía-a oval e delicada, porém um tanto grande para ser mantida pelo pescoço, que era fino. Os olhos obedeciam a uma forma obliqua, o nariz comprido e fino, e o lábio inferior saliente. Todo o seu conjunto dá a impressão de um indivíduo magro, porém, relativamente forte. Fisicamente falando, era um faraó de “fina estirpe”. Entretanto, tudo quanto se diz a respeito de sua origem, podemos afirmar é positivamente falso, mesmo diante de provas insofismáveis, se é que elas existem…1
Pois bem, é este o homem que resolveu realizar uma revolução religiosa, destronando o grande deus nacional, Amon-Rá, para substituí-lo pelo deus ATON, cujo culto impôs à Corte, aos sacerdotes, ao povo egípcio e aos próprios estrangeiros.
Romper as relações entre o Estado e a casta sacerdotal, que gera a religião de Estado, foi sempre uma obra difícil em todos os países e em todos os tempos. Porém, muito pior para um país, cujas tradições religiosas se achavam por demais enraizadas no espírito do povo.
Naquela época, encontrava-se Amon em todo o seu poderio e grandeza! Apenas dois séculos havia decorrido que os pastores vindos da Ásia, ocuparam o Delta e meio Egito, assenhoreando-se das cidades, roubando os campos, arruinando os templos dos deuses indígenas, em proveito de suas divindades: Baal, o asiático, e Sutekhu, o grande guerreiro. Foi com o auxílio de Amon que os pequenos reis tebanos da 17ª dinastia puderam iniciar a guerra da independência, repelindo, pouco a pouco, todos os pastores para fora do Egito, até que Ahmes I os expulsou definitivamente.
Se Tutmés I e Tutmés III puderam conquistar as Escadas da Síria, atravessar o Líbano, passar o Oriente e atingir as margens do Eufrates; se seus sucessores, os Ame- nophis, tinham sob seu protetorado a Síria e a Palestina do Norte, a Núbia, ao Sul, não era por Amon ter combatido com os faraós e guiado, na peleja, os archeiros e os carros do Egito?2
As narrações oficiais dessas campanhas gravadas nos muros de Karnack e Luxor atestavam que tais vitórias eram proezas de Amon; que os países cativos eram prisioneiros de Amon e que todos os tributos pagos na Síria e na Núbia vinham aumentar os tesouros de Amon. O deus tebano enriquecido e fortalecido por tantas vitórias… tornou-se o deus nacional, o deus da desforra contra os asiáticos.
Pai dos faraós, conquistador do estrangeiro, Amon era o deus que, por intermé- dio dos seus sacerdotes, assegurava a força e a autoridade do rei no governo interior do Egito. Após o glorioso reinado de Tutmés I, questões dinásticas haviam enfraquecido a casa real; tinham sido expulsos vários faraós de seus tronos, suplantados por uma mulher (o frágil instrumento de que eles sempre se serviram!), a rainha Hatso- pitu a qual possuía um templo em Deirel-Bahari, e, alternadamente, aceitos e expulsos, até que, finalmente, se tornaram triunfantes… Os grandes sacerdotes de Amon haviam presidido a tais intrigas (toujours Ia même chanson!), ora oferecendo, ora retirando o seu apoio… Tornaram-se, desse modo, verdadeiros “intendentes ou governadores do palácio”, dispondo do poder civil e, ao mesmo tempo, do religioso. No reinado de Hatsopitu, o príncipe Hapusend, sob Amenophis III, havia acumulado as funções de “profeta e chefe de Amon”, diretor de todos os profetas do Norte e do Sul, governador da cidade de Tebas, vizir do Egito inteiro, mas… escravo do clero. Um tal poder temporal e espiritual concentrado em uma só mão, eis o terrível perigo para o faraó!…
Sabe-se, muito bem, como terminam situações ambíguas como aquelas em que “o vassalo para ser rei, pouco a pouco, se vai assenhoreando do trono, para aí se ins- talar, comodamente, um dia”. Foi o que aconteceu no Egito, alguns séculos mais tarde, no fim da 20ª dinastia. Foram os sacerdotes de Amon que se fizeram faraós. Essa revolução sacerdotal já havia tido início no fim da 18ª. Porém, Amenophis IV foi o homem que modificou, por completo, a face das coisas: não permitiu aos sacerdotes de Amon destronarem os reis. Foi ele, ainda, quem tentou destruir o sacerdócio de Amon, suprimindo, ao mesmo tempo, o deus decrépito, por eles mesmos forjado.
Uma reação se impunha! No ano 6 de seu reinado, Tebas já não era a capital do Egito. A “cidade de Amon” tornou-se “a cidade de Aton”; os bens do deus tebano foram confiscados em benefício do deus Aton; o sumo-sacerdote de Amon e todo o clero não mais existiam. (Ó tempora! ó mores!…), pois o culto de Amon tinha sido proibido em todo o território egípcio. O próprio nome do deus não mais se pronunciava, nem podia mesmo ser escrito em papiros e pedras… E como existissem milhares de monumentos, o grande reformador deu início a uma destruição metódica (Ave, Kunaton! morituri te salutant!…), não dos monumentos, mas, do nome do primitivo deus. Nos muros, nas colunas, no cume dos obeliscos, no fundo dos túmulos, por toda parte, enfim, os agentes do rei martelaram sem cessar, o nome de Amon e de “sua contraparte”, a deusa Mût, embora que esta – para os Grandes Iniciados – seja uma simples expressão da sabedoria divina, como o é também a deusa Ísis, ora representando a Lua, ora Vênus, pouco importam opiniões contrárias.
Aniquilar o nome do deus era fazer o mesmo à sua alma, destruir seu Ka, seus títulos de propriedade, anular as suas conquistas e vitórias. Era refazer uma história do Egito, onde a glória dos grandes feitos realizados ficaria nas mãos dos seus verda- deiros autores, os faraós, o exército, o próprio povo, e não um deus orgulhoso e interesseiro que se dizia “seu pai e seu inspirador”. Finalmente, para destruir ainda mais tão negro passado, que deveria ser de todo apagado, o rei modifica seu próprio nome de Amenophis IV, para o de Kunaton, “o amado de seu Pai ATON”.
(continua)…
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1 O conhecido egiptólogo A. Moret, autor de Reis e Deuses do Egito e outras obras de incontestável valor, depois de citar o que até então se conhecia a respeito da origem do faraó Amenophis IV, diz o seguinte: “Porém, em 1905, M. Theodor Davis teve a felicidade de descobrir, em Tebas, o túmulo intacto dos avós do referido faraó. Ora, todos os objetos retirados do hipogeu são do mais belo estilo egípcio, e nenhum deles denota o menor traço de influência estrangeira… As próprias múmias não puderam fornecer nenhuma docu- mentação positiva. Tuáa (sua avó) representa o puro tipo egípcio e Iuda (seu avô), possuindo um rosto ornado de grande nariz, sem a característica, portanto, da raça semítica”.
Parecia, pois, que os pais de Til (sua mãe) fossem de boa fonte egípcia; mas, eis que aparece um documento, recentemente descoberto, que qualifica “Iuaá como príncipe do Zahi, isto é, do Líbano”. E novas considerações são feitas, pelo autor, em torno da origem do misterioso faraó, a quem dedicamos o presente estudo. Como já o fizemos com o Conde de São Germano, dele poderíamos dizer o mesmo através das “sete letras rosacrucianas de que se compõe a palavra VITRIOL: VISITA INTERIORA TERRAE RECTIFICANDO INVENIES OM- NIA LAPIDEM”. E chega…
2 O deus de hoje, por acaso, não procede de modo idêntico? Que dizer, por exemplo, de se abençoar as espa- das dos contendores, quando a Igreja é a mesma? Senão, ainda, aguardando a vitória dos protegidos por tais bênçãos, a fim de saber para que lado deve tomar?
Não há como provar o contrário…
o – O – o