Crônicas

Quando a canção traduz um momento

Foi exatamente isso o que aconteceu ao assistir “Aftersun”

Kátia Muniz

Kátia Muniz

Por: Kátia Muniz

Quem acompanha a minha coluna no jornal sabe o quanto sou apaixonada por filmes e como eles costumam me inspirar a escrever. Às vezes, basta uma única cena para despertar uma reflexão e me impulsionar a produzir um texto.

Foi exatamente isso o que aconteceu ao assistir “Aftersun”. Confesso, porém, que, em um primeiro momento, cheguei a pensar que o longa nem era tão impactante assim. Precisei revisitar uma passagem que conecta toda a narrativa para, só então, perceber sua profundidade. 

À primeira vista, a trama parece simples: pai e filha viajam para passar uma semana de férias. Só isso? Não. À medida que a história se desenvolve, vamos notando o vínculo entre os dois naquela experiência compartilhada. No entanto, é essencial ir além das aparências, expandir o olhar para o que não está explícito. A menina tem 11 anos e, nessa fase da vida, naturalmente ainda não possui maturidade nem discernimento para compreender o que aquele pai está enfrentando.  Para ela, trata-se meramente de uma viagem de lazer. E para ele…

Permita-me, caro leitor, fazer uma pausa no raciocínio e lhe perguntar de maneira direta: quando você tinha 11 anos, como era a sua relação com o seu pai? 

Talvez diga que era muito agradável, que brincavam sempre que a rotina dele permitia, que o via sair para o trabalho, que ele o(a) deixava na porta da escola, que guarda boas lembranças das apresentações escolares em homenagem ao Dia dos Pais. É possível também que demore um pouco para responder, enquanto vasculha a memória, ou, por alguma razão, não tenha vivido essas situações.

A verdade é que, aos 11 anos, conhecemos nosso pai de forma superficial. Acessar as camadas mais profundas daquele homem que acordava cedo para dar conta das obrigações diárias é algo que, muitas vezes, não conseguimos fazer, mesmo estando ao seu lado por anos a fio. 

Crescemos e ganhamos independência. Passamos a visitá-lo ocasionalmente e, entre almoços de domingo e celebrações em datas comemorativas, percebemos que pouco sabemos sobre a figura paterna.

Talvez ignoremos os medicamentos que ele toma, como foi sua juventude, seu primeiro amor, os desenganos afetivos, o receio no início de um novo emprego, a euforia ao receber o primeiro salário, seus sentimentos dentro de um casamento duradouro, ou qual era sua disciplina preferida na escola. Há assuntos que os pais, simplesmente, não compartilham.

Surge, então, uma certa estranheza:  sendo pai, seria natural que os filhos soubessem mais sobre ele. No entanto, os homens que exercem essa função geralmente impõem limites e revelam apenas o que consideram apropriado. 

Feita essa reflexão, voltemos ao filme e ao encerramento do texto.  

A cena que revi mostra pai e filha dançando ao som de “Under Pressure”, canção de Queen e David Bowie. Não há diálogo entre eles nesse momento, pois a letra da música expressa, com precisão, tudo o que não foi verbalizado. É um trecho cuidadosamente escolhido, uma sequência que ecoa no espectador e questiona: conhecemos, de fato, o homem que chamamos de pai?

No fim das contas, o longa é um excelente exercício de leitura nas entrelinhas. Assim como na vida real, os silêncios podem carregar respostas. Mas, nem sempre, haverá uma trilha sonora capaz de traduzir as inquietações e angústias que nos atravessam.


Quando a canção traduz um momentoAvatar de Kátia Muniz

Kátia Muniz

Kátia Muniz é formada em Letras e pós-graduada em Produção de Textos, pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá (hoje, UNESPAR). Foi colaboradora do Jornal Diário do Comércio por sete anos, com uma coluna quinzenal de crônicas do cotidiano. Nos anos de 2014, 2015 e 2016 foi premiada em concursos literários realizados na cidade de Paranaguá. Em outubro de 2018, foi homenageada pelo Rotary Club de Paranaguá Rocio pela contribuição cultural na criação de crônicas.

Quando a canção traduz um momento

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